Resumo: Valendo-se da ferramenta etnográfica do “Diário de Campo”, resultante da observação participante e de registro fotográfico, realizada em Maputo entre setembro e outubro de 2022, o objetivo principal do texto é articular o atual cenário literário da cidade a sua geografia, analisando permanências e transformações que se estabelecem na constante disputa entre memória e esquecimento.
A pesquisa de campo foi realizada entre meados de setembro a meados de outubro de 2022, como parte integrante da Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior intitulada “A literatura adentra onde a história não alcança? O debate literário e a produção historiográfica em Moçambique (1984-2019)”, processo #2019/26408-2. Para este texto foram previamente selecionados quatro dias distribuídos entre a primeira e segunda semana do campo.
“Isto é Maputo, ninguém sabe bem como”.
(AZAGAIA, Povo no Poder)
Quarta-feira, 14 de setembro
Sete anos depois, volto a pisar em Maputo. A cidade em que estive quatro vezes, como era de se imaginar, construiu outros caminhos e manteve tantos outros. A Baia de Maputo, onde o sol alaranjado se põe e antes atravessada unicamente pela água, desde 2018, pode ser cruzada na maior ponte suspensa da África: obra chinesa3. Assim como o hotel e o centro comercial Glória, cujas estátuas de enormes dragões se postam como guardiões do índico. Mas se a ponte é, de fato, grandiloquente como indica a imagem acima, os 125 meticais cobrados a cada vez que se passa por ela mantiveram em funcionamento os pequenos mapapaias e alguns cansados batelões, já que a maioria foi para o “abate”4. Mais ainda é meu primeiro dia e desço a Avenida 24 de Julho em direção a Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO). No “Café das Letras”, que divide o espaço com a associação e serve de convívio entre artistas, jornalistas e músicos, sou apresentada a Carlos Paradona, secretário-geral da AEMO e aos escritores Aurélio Furdela e Huwana Rubi, os quais me convidam a uma conversa que dali a nada se realizaria na “Casa do Professor”, com o escritor Marcelo Panguana. É dessa forma espontânea que se dá minha entrada ao campo e, logo no primeiro dia, escuto escritores mais velhos como Juvenal Bucuane, Filemone Meigos, Ungulani Ba Khosa, entre outros, fazerem testemunhos sobre a vida e obra do elegante senhor Panguana. A conversa é dinamizada pela bibliotecária Aissa Mitháno no apartamento da falecida irmã e localizado no mesmo prédio de uma agência bancária, num arranjo inusitado que acaba por posicionar os escritores “acima” dos bancos, como zomba Aissa. É interessante pensar que, num bairro marcado por altíssima especulação imobiliária como é o Polana Cimento, o apartamento, que também conta com uma pequena biblioteca e livraria, foi reutilizado como espaço de troca intelectual. Voltando ao encontro em torno de Panguana, a descontração tecida entre sua fina ironia e as muitas gargalhadas dos presentes foi a marca da noite. O público era majoritariamente composto por antigos escritores ou ainda por camaradas que partilham as aventuras e desventuras de escrever num país em que ainda pouco se lê5. A presença de jovens escritores no evento se fez notar e, através deles, despontaram algumas das questões que atualmente preenchem o círculo literário local. O jovem cujo livro de poemas foi publicado na língua changana, por exemplo, questionou Marcelo Panguana sobre a ausência de sua escrita nas línguas nacionais. Trazendo à tona a velha questão da moçambicanidade literária, aparentemente com a questão linguística mais aflorada, Panguana respondeu que a questão, por mais importante que seja, não deve ser tomada de forma emocional já que inúmeros entraves estruturais, como o ensino das línguas e o consequente acesso às e dições v oltadas a e las, p recisam s er a dequadamente desenvolvidas. Já Ungulani Ba Ka Khosa tomou a palavra e, frente a algum desconforto instalado na sala, respondeu ao jovem: “a verdadeira militância de um escritor é escrever seu melhor livro não importa em que língua”. Depois de uma